domingo, 8 de dezembro de 2013

Por quanto tempo ainda se conseguirá manter a grande ilusão?

Há fenómenos terrestres que me conseguem surpreender, um deles é a incrível capacidade dos humanos se auto-iludirem. Toda a ciência e tecnologia a que hoje têm acesso não parece ter qualquer efeito na sua capacidade de ler a realidade e de antecipar cenários e de se prepararem para escolher aquele em que a sua sobrevivência é mais viável. Mesmo que não quiséssemos ser tão dramáticos, poderíamos apenas considerar a escolha entre cenários confortáveis e desconfortáveis, embora muitos de nós, que não temos essa maravilhosa capacidade de nos auto-iludirmos, saibamos que se trata de uma escolha entre cenários viáveis e inviáveis.

A grande ilusão é alimentada pela informação oficial e apoiada pela ciência e pela tecnologia. Por isso é que a consciência colectiva da realidade só será possível com uma mudança cultural profunda. Esse é o grande desafio do séc. XXI. Temos as ferramentas científicas e tecnológicas, mas falta-nos o essencial: a base cultural, uma consciência abrangente da realidade, uma consciência humana da prioridade da vida sobre a morte, porque no final da linha é disso que se trata.


Hoje o poder é equivalente à capacidade de destruir, não de construir, de sugar recursos naturais e humanos com a sofreguidão e a grosseria mais básicas, invadir e apropriar-se de um espaço colectivo e público, de mandar legislar a seu favor, de colocar em marcha a propaganda e o entretenimento nos canais de televisão e nos sites e redes sociais. 

Alguns filósofos já tinham antecipado a sociedade-espectáculo e antes deles George Orwell já nos tinha mostrado até onde o poder demente pode chegar, e apenas através da observação das grandes potências da altura. Esse poder demente e destruidor, segundo Orwell, apenas se pode manter com o terror, o medo colectivo, a mecanização do trabalho ao nível da escravatura, a ausência de núcleos familiares ou comunitários, e a vigilância. Este é um cenário-limite, um sinal de alarme.
Até no cinema de ficção científica os cenários são, invariavelmente, tiranias, destruição, guerras, violência, um caos em que a vida nada vale, em que o objecto e a sua posse definem o valor de um indivíduo. 
Já vimos isto na história dos povos conquistadores e dos conquistados. Mas podemos ficar mais perto, no séc. XX, nem precisamos ir mais longe. O olhar do tirano é um olhar avaliador, o que vale isto no mercado dos objectos?, esta é a sua cultura de base. É uma cultura que descende de forma directa dos povos que escravizavam outros povos. As pessoas passam a ser apenas avaliadas como objectos, o que produzem, por quanto tempo, qual o seu prazo de validade produtiva. É para isso que servem os povos, as massas, para produzirem, contribuírem para um qualquer PIB ilusório que só se reflecte na manutenção das elites: os que puxam os cordelinhos e os que aparentemente governam e legislam.



Tinha prometido falar aqui da taxa de natalidade, lembram-se? Pois é aqui que entra a taxa de natalidade que tanto preocupa a Pordata. A taxa de natalidade é a que mantém a lógica da corrente, a lógica do prazo de validade dos povos e das massas. O futuro do país é, assim, avaliado pela diferença velhos/reformados sobre jovens/produção/contribuintes. Os casais portugueses em idade fértil já só produzem 1,8 filhos para a lógica produtiva e contributiva. Pessoalmente até me admira que haja jovens a apostar assim no futuro do país ao ponto de arriscar ter um filho num país que não aposta neles, que assiste impassível a despedidas no aeroporto todos os dias. 

Como TPC proponho: cruzem a taxa de natalidade com a taxa de desemprego jovem, e estamos a falar de jovens qualificados, e acrescentem a esses dados os dados da geração anterior a esta, a geração dos 500 euros, também eles qualificados. A seguir, cruzem a taxa de natalidade e a taxa de desemprego e a média dos salários destas duas gerações com a taxa de emigração que atingiu os níveis dos anos 60. 
Se nos querem evidenciar a viabilidade do país, é estes dados cruzados e comparados que nos têm de mostrar, não é apenas a taxa de natalidade.

O país e a sua viabilidade? O país entrou no clube europeu sem condições para isso e as próprias condições de ingresso só o penalizavam a médio e longo prazo. Aqui começou a grande ilusão (para não utilizar a expressão que seria mais adequada, a grande mentira).

O país foi sempre bom aluno de Bruxelas, desde o início. O falhanço actual do país deve ser, pois, considerado, o falhanço dos gestores políticos nacionais e europeus. Todos falharam, ponto final. Todos alimentaram a grande ilusão e continuam a querer mantê-la. Não são eles que nos irão dizer a verdade. Até porque já desenharam os cenários para o país e para a Europa. E nesses cenários não cabem os cidadãos, esses são os figurantes, os papalvos que acreditam que o ano que vem é que é, que o desemprego já está a diminuir, que a economia já está a dar sinais de vida, que a austeridade valeu a pena (esta é a mais cínica de todas, sobretudo para as crianças que passaram fome, os jovens que fazem biscates, os novos escravizados em quintas duvidosas, as gerações sacrificadas, expressão que retirei a Chris Hedges, as sacrifice zones). E já agora, por falar em sacrifice zones, se pegarem no mapa da Europa e o colarem numa parede lá de casa, podem ir pregando os pionaises coloridos a identificar as sacrifice zones europeias. Primeiro, são países, facilmente identificáveis, depois serão cada vez mas localizadas e atingirão comunidades de países ricos, os subúrbios das cidades, as zonas esquecidas do território, as que não produzem, as mais envelhecidas, as que não têm recursos naturais nem humanos para explorar rapidamente, para sugar, para esgotar. Porque essa é a lógica da cultura dominante actual na Europa, não se iludam.

Será que os cidadãos europeus ainda podem criar uma nova cultura que privilegie a vida em vez da morte, a criatividade em vez da exploração, as pessoas em vez dos objectos, as comunidades em vez do egocentrismo, uma gestão colectiva de equipas constituídas por pessoas saudáveis e que revelem maturidade e responsabilidade, em vez dos actuais imaturos egocêntricos que servem a cultura dominante?

Não será com a UE, a CE, o BCE, nem mesmo o PE, a meu ver. Nem mesmo com os seus discursos de circunstância sobre a "pobreza". É na linguagem que utilizam que revelam a sua cultura de base, a linguagem do poder. A "pobreza" é precisamente mantida pela sua própria gestão ao retirar, uma a uma, as possibilidades de cada cidadão gerir a sua vida, recuperar a sua vida, resgatar a sua vida. A sua única vida. 
Espero que as gerações sacrificadas lhes respondam à letra quando lhes vierem com a converseta: a austeridade valeu a pena






Sem comentários:

Enviar um comentário