O Mapa é um conto de 1997, Ano Internacional dos Refugiados, editado no antigo site Geocities e que procurava antecipar um futuro próximo.
Quando nos projectamos num futuro próximo, acabamos por antecipar algumas ferramentas que irão ser desenvolvidas: o painel de pontinhos luminosos em movimento onde a nossa personagem observa os movimentos dos refugiados em tempo real, antecipa os actuais Visualizadores de Informação que funcionam com a actualização permanente dos dados, isto é, constantemente alimentados em tempo real.
Em 1997 vivia-se o fascínio dessa nova tecnologia da comunicação, a internet, mas estava-se ainda longe de prever o verdadeiro impacto que iria ter nas nossas vidas, no trabalho, no convívio social, mas também no incrível desenvolvimento da ciência e da tecnologia e no seu acesso a milhões de pessoas.
Quanto aos traumas psicológicos após contacto com a violência e sofrimento, em pessoas que permaneceram em cenários de guerra e destruição, são já conhecidos. Resta saber se as terapias actuais são as mais adequadas. No conto, a personagem perde a memória, como vemos acontecer frequentemente em filmes e nas séries de televisão. Na verdade, o cérebro tem as suas próprias defesas, desliga algumas ligações temporariamente para evitar níveis insuportáveis de sofrimento.
O Mapa
GABINETE
DE ESTUDOS DOS MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS, 2011, MARÇO
Milhões de pessoas em movimento. No mapa-painel electrónico visualizava melhor todo esse processo. Os dados eram actualizados automaticamente. O início do século iria ficar conhecido como a Época dos
Refugiados. Diferentes etnias numa amálgama confusa. Desenraizamento com tudo o
que isso implica. A morte de culturas. O seu fim definitivo.
Fizera
um estudo exaustivo das principais culturas desaparecidas. Nunca assistira
directamente a nenhum desembarque de refugiados nem visitara nenhum campo e
acreditava que essa falha podia comprometer a credibilidade do trabalho. Sempre
dera prioridade ao lado científico da coisa e às implicações sociais e
económicas.
Conseguia
projectar diversos quadros num futuro próximo. Mas não se aproximara das
situações. Os dados chegavam-lhe por computador, pedidos selectivamente. De vez
em quando, ligeiras alterações, à medida que iam sendo actualizados.
A
amiga descobrira logo desde o início este seu entusiasmo pelo estudo dos
movimentos migratórios. Fora dela a ideia de adaptar uma das divisões da casa e
construir um pequeno gabinete. Primeiro tinha sido a vez dos Receptores de
Informação mais sofisticados, depois o aperfeiçoamento de programas para o
tratamento dos dados. Finalmente o mapa-painel com os seus pontos e trajectos
luminosos.
Do seu posto de observação,
designação que dera ao Gabinete de Estudos dos Movimentos Migratórios, vira
tudo isso acontecer. Do seu posto de observação isolado. Primeiro tinha
começado por estudar os movimentos migratórios do interior do país para os
centros urbanos. Tinham sido tentadas algumas medidas e estratégias de
impedimento dessa sangria, é certo. Mas o processo era já irreversível. A
descaracterização do país. O país e a sua cultura própria, sempre vistos mais
na perspectiva do espectáculo do que na sua essência. Da arquitectura ao
estilo de vida, dos valores à linguagem. Já nada era identificável como
genuíno, como característico de uma comunidade. A despersonalização em toda a
linha. A perda de uma memória colectiva. Um processo irreversível. Mas o pior
eram os movimentos migratórios originados por focos de violência e destruição.
Iniciara este estudo como sequência lógica do estudo inicial. Estes movimentos
migratórios de fuga, de uma destruição para outra forma de destruição, tinham
começado a exercer sobre si um enorme fascínio, deveria dizer mesmo
obsessão.
Receber um dia uma mensagem
electrónica. E nessa mensagem alguém dizer que se interessava imenso pelo estudo
dos movimentos migratórios actuais. Sobretudo as consequências dessa realidade,
das alterações radicais e violentas. Alguém atento aos seus textos na Internet
e que gostaria de trocar algumas ideias. No geral, uma mensagem muito
simpática. Assinada O colega.
Passar a trocar mensagens e ideias com uma
certa frequência. Encontrar finalmente um outro entusiasta da recuperação de
culturas em risco de destruição. Neste local isolado.
Hoje em dia o isolamento é muito relativo,
pensou, o melhor seria utilizar a palavra deserto. Neste local deserto, onde
quase não se vêem pessoas, encontrara uma personagem de ficção. Porque este
novo colega de investigações era mais uma personagem do que propriamente uma
simples pessoa, digamos uma pessoa próxima da realidade. Conseguia imaginá-lo
em todas as situações possíveis mas nunca em situações simples, de todos os
dias. A verdade é que sentia uma forte admiração por esta personagem. Na
comunicação era o mais lacónico possível. Reservado e sóbrio, não se encaixava
em nenhuma das características do homem actual.
Enviou-lhe um dia imagens do laboratório. Na mensagem ouviu-o comentar o mapa-painel e os seus trajectos luminosos:
Parece a sinalização de um aeroporto de noite. Fascinante. É completamente diferente dos gráficos no écran do computador. Lembram os painéis gigantes que víamos nos filmes, naqueles postos de observação militares do século passado. A ideia da actualização contínua e imediatamente visível é engenhosa. Não lhe dá a sensação de qualquer coisa viva? Qualquer coisa que está a acontecer neste preciso momento. Pessoas em movimento.
Enviou-lhe um dia imagens do laboratório. Na mensagem ouviu-o comentar o mapa-painel e os seus trajectos luminosos:
Parece a sinalização de um aeroporto de noite. Fascinante. É completamente diferente dos gráficos no écran do computador. Lembram os painéis gigantes que víamos nos filmes, naqueles postos de observação militares do século passado. A ideia da actualização contínua e imediatamente visível é engenhosa. Não lhe dá a sensação de qualquer coisa viva? Qualquer coisa que está a acontecer neste preciso momento. Pessoas em movimento.
Respondera-lhe que à distância era diferente. E na
resposta ouviu a frase inquietante:
Eu nunca me consegui distanciar.
Esta observação ficara-lhe registada. O estudo à distância de grupos, quaisquer que fossem, não teria já implícita essa sua forte consciência da importância desses mesmos grupos, mesmo na sua própria existência? Tão forte e absoluta que o levara a dedicar a sua própria existência ao seu estudo? No fundo, esses grupos não tinham muito mais importância do que desejaria admitir, mesmo a si próprio, sobretudo a si próprio? Não exerciam sobre si um fascínio muito maior? Não se rejeita o que mais nos fascina, quando nos fascina de forma tão absoluta?
Eu nunca me consegui distanciar.
Esta observação ficara-lhe registada. O estudo à distância de grupos, quaisquer que fossem, não teria já implícita essa sua forte consciência da importância desses mesmos grupos, mesmo na sua própria existência? Tão forte e absoluta que o levara a dedicar a sua própria existência ao seu estudo? No fundo, esses grupos não tinham muito mais importância do que desejaria admitir, mesmo a si próprio, sobretudo a si próprio? Não exerciam sobre si um fascínio muito maior? Não se rejeita o que mais nos fascina, quando nos fascina de forma tão absoluta?
Reparou então que ficara absorto no seu próprio raciocínio e não acompanhara o
colega que já mudara de tema. Ouviu a voz calma como se fosse um conjunto de
sons que começam a surgir do silêncio:
Tudo passou a ser reciclável hojeem dia. As memórias colectivas, as individuais
deixaram de contar, contrariamente ao previsto, o património, os valores, as
imagens, até as pessoas.
Tudo passou a ser reciclável hoje
Tentou regressar do raciocínio anterior que
ainda o incomodava e ouvir com atenção:
As transformações que o tratamento de imagem passou a exigir, por exemplo. Tornou-se cada vez mais sofisticada neste século. Os gabinetes de recuperação de imagem cada vez mais procurados. É certo que foi uma conquista do século passado mas é agora que vemos proliferar por aí os mutantes. E não só no mundo do espectáculo. Na política, na ciência, na informação.
As transformações que o tratamento de imagem passou a exigir, por exemplo. Tornou-se cada vez mais sofisticada neste século. Os gabinetes de recuperação de imagem cada vez mais procurados. É certo que foi uma conquista do século passado mas é agora que vemos proliferar por aí os mutantes. E não só no mundo do espectáculo. Na política, na ciência, na informação.
A ideia de comprometer um trabalho por ser feito à
distância começara a preocupá-lo. O seu isolamento científico, a sua protecção
da realidade. Dedicar-se ao estudo das pessoas e dos seus movimentos migratórios
e nunca ter presenciado por assim dizer nenhuma dessas deslocações.
Estava previsto para breve um desembarque de um grupo numa das cidades já em situação crítica. Tinham recebido vários grupos e esgotado todas as capacidades de acolhimento. Cinco horas de voo se conseguisse lugar num avião da equipa de reconhecimento e apoio às vítimas. Uma ligação directa a um funcionário numa posição estratégica e tudo se arranjava. A hesitação final no momento de efectuar a ligação. A decisão fatal, pensou, enquanto fixava o painel com os trajectos luminosos e coloridos, as luzes a piscar em locais estratégicos.
Estava previsto para breve um desembarque de um grupo numa das cidades já em situação crítica. Tinham recebido vários grupos e esgotado todas as capacidades de acolhimento. Cinco horas de voo se conseguisse lugar num avião da equipa de reconhecimento e apoio às vítimas. Uma ligação directa a um funcionário numa posição estratégica e tudo se arranjava. A hesitação final no momento de efectuar a ligação. A decisão fatal, pensou, enquanto fixava o painel com os trajectos luminosos e coloridos, as luzes a piscar em locais estratégicos.
A viagem não fora tão cansativa
como tinha previsto. Tinha tido por companhia as pessoas mais estranhas. Havia
os especialistas em evacuações de emergência, com os apoios necessários para a
sobrevivência do maior número possível de refugiados. Utilizavam um discurso um
pouco hermético com siglas e termos técnicos à mistura e referências a casos
anteriores. Conheciam os meandros mais ocultos e sinuosos da política externa e
identificavam os motivos desta ou daquela medida. Previam com bastante precisão
os movimentos seguintes e planeavam as medidas estratégicas de prevenção.
Seriam completamente ultrapassados pelos acontecimentos, como mais uma vez se iria
verificar. Por falta de meios e de apoio no terreno. E pela própria dimensão
das situações de crise. Havia os especialistas de saúde, seleccionados pela
capacidade de intervenção rápida quando expostos a níveis de stress elevados e
prolongados. E militares treinados para lidar com multidões em fuga nas
situações mais precárias, com o objectivo essencial de protecção, escolha dos
trajectos mais seguros e detecção de explosivos nas vias a ser utilizadas.
Finalmente alguns especialistas de informação, com o seu linguajar irritante,
de quem se exprime para um público, de quem se preocupa com o lado espectacular
dos acontecimentos. Verificou que era o único especialista teórico, por assim
dizer. Isso começava a preocupá-lo. Como se iria adaptar à situação, à aproximação
da realidade, do facto ao vivo e no local.
A cidade
evidenciava todos os sinais possíveis da decadência e da destruição sistemática
provocada por uma guerra civil. Tudo a saque. As casas desertas, algumas quase
totalmente destruídas. O silêncio. A poeira amarela.
Vagueou pelas ruas que lhe lembraram cenários abandonados de filmes antigos. Num momento a cidade era uma coisa viva, no momento seguinte uma coisa morta. E o pior era o esquecimento. Conhecera culturas que alimentavam as memórias da destruição e do sofrimento a que tinham sido submetidas. É certo, pensou, que mesmo essas culturas, que alimentavam as memórias do seu papel de vítimas de destruição, eram as mesmas que destruíam outras culturas. Vítimas históricas e agressoras históricas. De onde se podia depreender que é tudo uma hipocrisia pegada. Qualquer cultura promove o seu papel de vítima e não o faz inocentemente. Porque também tem vocação de agressor. Mas a memória era fundamental, não para promover a supremacia de uma cultura sobre outra, legitimar essa supremacia, mas para mostrar às pessoas essa realidade de agressores e vítimas, essa lógica humana.
Vagueou pelas ruas que lhe lembraram cenários abandonados de filmes antigos. Num momento a cidade era uma coisa viva, no momento seguinte uma coisa morta. E o pior era o esquecimento. Conhecera culturas que alimentavam as memórias da destruição e do sofrimento a que tinham sido submetidas. É certo, pensou, que mesmo essas culturas, que alimentavam as memórias do seu papel de vítimas de destruição, eram as mesmas que destruíam outras culturas. Vítimas históricas e agressoras históricas. De onde se podia depreender que é tudo uma hipocrisia pegada. Qualquer cultura promove o seu papel de vítima e não o faz inocentemente. Porque também tem vocação de agressor. Mas a memória era fundamental, não para promover a supremacia de uma cultura sobre outra, legitimar essa supremacia, mas para mostrar às pessoas essa realidade de agressores e vítimas, essa lógica humana.
O
homem evolui no sentido da sua própria protecção e sobrevivência num mundo
hostil. Agora tudo o ameaça. Processos de destruição sistemática. E tudo à
escala mundial.
Percorreu a
distância que o separava do grupo. A mochila pesava-lhe nas costas. Aliás tudo
lhe pesava nesse dia. As imagens, sobretudo as imagens que registara. Pessoas
aglomeradas em espaços sem quaisquer condições. A subnutrição. As doenças.
Pessoas encurraladas, sem saída, sem hipótese de sobrevivência. As imagens
registadas são muito diferentes da realidade ao vivo. Vive-se numa época
em que se viram todas as imagens possíveis desse horror na televisão ou em
vídeo, mas nada se compara à realidade. Vive-se numa época de
habituação-banalização-acomodação. A violência e o sofrimento que não se vê não
existe. Para se ver a violência e o sofrimento tem de existir o espectáculo. A
informação e o seu espectáculo. Montar o espectáculo. Desmontar o espectáculo.
A Associação de Apoio à Vítima de
Desmemoriação. Esta insistência na designação de vítima causava-lhe
calafrios. Era a institucionalização de uma atitude. Só podia tornar-se a
manutenção de um cenário e, nesse cenário, de uma peça repetitiva. A representação
de um papel que se aprendeu e que se repete até à exaustão. Metemo-nos num
papel, quase sempre desconfortável, e quase obrigamos os outros a representar
também o seu papel, continuadamente. Não lhes damos grandes
alternativas, esperamos que eles representem o papel que lhes atribuímos. O jogo
dos papéis. A vítima precisa de um agressor, o agressor de uma vítima. O
pior era quando uma vítima não pedia para ser vítima porque nunca o fora, não
era a sua natureza, e de repente via a sua existência completamente destruída
por um agressor que sempre o fora, era a sua própria natureza. Não havia
vítimas suficientes para tantos agressores, concluiu. A história é feita destes
desequilíbrios doentios.
CENTRO DE ESTUDOS DE RECUPERAÇÃO DE MEMÓRIA, 2011,
OUTUBRO
Tinham-no sentado numa cadeira especial, pelo menos era o
que lhe parecia. Distinguiu algumas luzes em volta, depois imagens mais
nítidas. Um gabinete de portas envidraçadas. Nas paredes, painéis com luzes
coloridas a piscar. Estes painéis eram-lhe vagamente familiares. Reparou
tratar-se de uma espécie de mapas de cérebros humanos observados de perfil,
alguns a rodar sobre si próprios.
Um homem entrou no gabinete. Comentou qualquer coisa
que lhe pareceu ser uma pergunta. Não teve tempo de responder. O homem
inclinou-se sobre uma espécie de monitor colocado numa mesa oval e saiu. No
corredor, por detrás da porta envidraçada do gabinete, que deixara entreaberta,
viu-o falar apressadamente com outro homem. Deslocou a cadeira e inclinou-se
para a frente.
– Temos mais um caso. Com este são já vinte esta semana.
– É uma autêntica epidemia. Refugiados por todos os lados.
– E desta vez não temos quaisquer dados de identificação, nada. Nem um único cartão electrónico ou mesmo o processo clínico.
– Nesse caso devemos contactar a Associação de Apoio à Vítima de Desmemoriação, o que é que achas?
– O caso foi-nos precisamente encaminhado pela Associação. Parece que já não têm capacidade de resposta. Gostava que o visses. Nunca nos passou nada assim pelas mãos.
– Estas pessoas apresentam todos os sinais de ter sido expostas a um processo de violência mental, a alterações radicais e definitivas, e aparecem-nos nas condições mais precárias. Quando é que isto vai parar?
– Temos mais um caso. Com este são já vinte esta semana.
– É uma autêntica epidemia. Refugiados por todos os lados.
– E desta vez não temos quaisquer dados de identificação, nada. Nem um único cartão electrónico ou mesmo o processo clínico.
– Nesse caso devemos contactar a Associação de Apoio à Vítima de Desmemoriação, o que é que achas?
– O caso foi-nos precisamente encaminhado pela Associação. Parece que já não têm capacidade de resposta. Gostava que o visses. Nunca nos passou nada assim pelas mãos.
– Estas pessoas apresentam todos os sinais de ter sido expostas a um processo de violência mental, a alterações radicais e definitivas, e aparecem-nos nas condições mais precárias. Quando é que isto vai parar?
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