domingo, 29 de setembro de 2013

O Mapa (conto editado no antigo Geocities em 1997, Ano Internacional dos Refugiados)




O Mapa é um conto de 1997, Ano Internacional dos Refugiados, editado no antigo site Geocities e que procurava antecipar um futuro próximo.
Quando nos projectamos num futuro próximo, acabamos por antecipar algumas ferramentas que irão ser desenvolvidas: o painel de pontinhos luminosos em movimento onde a nossa personagem observa os movimentos dos refugiados em tempo real, antecipa os actuais Visualizadores de Informação que funcionam com a actualização permanente dos dados, isto é, constantemente alimentados em tempo real.
Em 1997 vivia-se o fascínio dessa nova tecnologia da comunicação, a internet, mas estava-se ainda longe de prever o verdadeiro impacto que iria ter nas nossas vidas, no trabalho, no convívio social, mas também no incrível desenvolvimento da ciência e da tecnologia e no seu acesso a milhões de pessoas. 
Quanto aos traumas psicológicos após contacto com a violência e sofrimento, em pessoas que permaneceram em cenários de guerra e destruição, são já conhecidos. Resta saber se as terapias actuais são as mais adequadas. No conto, a personagem perde a memória, como vemos acontecer frequentemente em filmes e nas séries de televisão. Na verdade, o cérebro tem as suas próprias defesas, desliga algumas ligações temporariamente para evitar níveis insuportáveis de sofrimento.


O Mapa

GABINETE DE ESTUDOS DOS MOVIMENTOS MIGRATÓRIOS, 2011, MARÇO
Milhões de pessoas em movimento. No mapa-painel electrónico visualizava melhor todo esse processo. Os dados eram actualizados automaticamente. O início do século iria ficar conhecido como a Época dos Refugiados. Diferentes etnias numa amálgama confusa. Desenraizamento com tudo o que isso implica. A morte de culturas. O seu fim definitivo.
Fizera um estudo exaustivo das principais culturas desaparecidas. Nunca assistira directamente a nenhum desembarque de refugiados nem visitara nenhum campo e acreditava que essa falha podia comprometer a credibilidade do trabalho. Sempre dera prioridade ao lado científico da coisa e às implicações sociais e económicas.
 Conseguia projectar diversos quadros num futuro próximo. Mas não se aproximara das situações. Os dados chegavam-lhe por computador, pedidos selectivamente. De vez em quando, ligeiras alterações, à medida que iam sendo actualizados.
 A amiga descobrira logo desde o início este seu entusiasmo pelo estudo dos movimentos migratórios. Fora dela a ideia de adaptar uma das divisões da casa e construir um pequeno gabinete. Primeiro tinha sido a vez dos Receptores de Informação mais sofisticados, depois o aperfeiçoamento de programas para o tratamento dos dados. Finalmente o mapa-painel com os seus pontos e trajectos luminosos.

Do seu posto de observação, designação que dera ao Gabinete de Estudos dos Movimentos Migratórios, vira tudo isso acontecer. Do seu posto de observação isolado. Primeiro tinha começado por estudar os movimentos migratórios do interior do país para os centros urbanos. Tinham sido tentadas algumas medidas e estratégias de impedimento dessa sangria, é certo. Mas o processo era já irreversível. A descaracterização do país. O país e a sua cultura própria, sempre vistos mais na perspectiva do espectáculo do que na sua essência. Da arquitectura ao estilo de vida, dos valores à linguagem. Já nada era identificável como genuíno, como característico de uma comunidade. A despersonalização em toda a linha. A perda de uma memória colectiva. Um processo irreversível. Mas o pior eram os movimentos migratórios originados por focos de violência e destruição. Iniciara este estudo como sequência lógica do estudo inicial. Estes movimentos migratórios de fuga, de uma destruição para outra forma de destruição, tinham começado a exercer sobre si um enorme fascínio, deveria dizer mesmo obsessão.

Receber um dia uma mensagem electrónica. E nessa mensagem alguém dizer que se interessava imenso pelo estudo dos movimentos migratórios actuais. Sobretudo as consequências dessa realidade, das alterações radicais e violentas. Alguém atento aos seus textos na Internet e que gostaria de trocar algumas ideias. No geral, uma mensagem muito simpática. Assinada O colega.
 Passar a trocar mensagens e ideias com uma certa frequência. Encontrar finalmente um outro entusiasta da recuperação de culturas em risco de destruição. Neste local isolado.

 Hoje em dia o isolamento é muito relativo, pensou, o melhor seria utilizar a palavra deserto. Neste local deserto, onde quase não se vêem pessoas, encontrara uma personagem de ficção. Porque este novo colega de investigações era mais uma personagem do que propriamente uma simples pessoa, digamos uma pessoa próxima da realidade. Conseguia imaginá-lo em todas as situações possíveis mas nunca em situações simples, de todos os dias. A verdade é que sentia uma forte admiração por esta personagem. Na comunicação era o mais lacónico possível. Reservado e sóbrio, não se encaixava em nenhuma das características do homem actual
Enviou-lhe um dia imagens do laboratório. Na mensagem ouviu-o comentar o mapa-painel e os seus trajectos luminosos: 
Parece a sinalização de um aeroporto de noite. Fascinante. É completamente diferente dos gráficos no écran do computador. Lembram os painéis gigantes que víamos nos filmes, naqueles postos de observação militares do século passado. A ideia da actualização contínua e imediatamente visível é engenhosa. Não lhe dá a sensação de qualquer coisa viva? Qualquer coisa que está a acontecer neste preciso momento. Pessoas em movimento.
Respondera-lhe que à distância era diferente. E na resposta ouviu a frase inquietante: 
Eu nunca me consegui distanciar.
Esta observação ficara-lhe registada. O estudo à distância de grupos, quaisquer que fossem, não teria já implícita essa sua forte consciência da importância desses mesmos grupos, mesmo na sua própria existência? Tão forte e absoluta que o levara a dedicar a sua própria existência ao seu estudo? No fundo, esses grupos não tinham muito mais importância do que desejaria admitir, mesmo a si próprio, sobretudo a si próprio? Não exerciam sobre si um fascínio muito maior? Não se rejeita o que mais nos fascina, quando nos fascina de forma tão absoluta? 
Reparou então que ficara absorto no seu próprio raciocínio e não acompanhara o colega que já mudara de tema. Ouviu a voz calma como se fosse um conjunto de sons que começam a surgir do silêncio: 
Tudo passou a ser reciclável hoje em dia. As memórias colectivas, as individuais deixaram de contar, contrariamente ao previsto, o património, os valores, as imagens, até as pessoas.
 Tentou regressar do raciocínio anterior que ainda o incomodava e ouvir com atenção: 
As transformações que o tratamento de imagem passou a exigir, por exemplo. Tornou-se cada vez mais sofisticada neste século. Os gabinetes de recuperação de imagem cada vez mais procurados. É certo que foi uma conquista do século passado mas é agora que vemos proliferar por aí os mutantes. E não só no mundo do espectáculo. Na política, na ciência, na informação.

A ideia de comprometer um trabalho por ser feito à distância começara a preocupá-lo. O seu isolamento científico, a sua protecção da realidade. Dedicar-se ao estudo das pessoas e dos seus movimentos migratórios e nunca ter presenciado por assim dizer nenhuma dessas deslocações.
Estava previsto para breve um desembarque de um grupo numa das cidades já em situação crítica. Tinham recebido vários grupos e esgotado todas as capacidades de acolhimento. Cinco horas de voo se conseguisse lugar num avião da equipa de reconhecimento e apoio às vítimas. Uma ligação directa a um funcionário numa posição estratégica e tudo se arranjava. A hesitação final no momento de efectuar a ligação. A decisão fatal, pensou, enquanto fixava o painel com os trajectos luminosos e coloridos, as luzes a piscar em locais estratégicos.

A viagem não fora tão cansativa como tinha previsto. Tinha tido por companhia as pessoas mais estranhas. Havia os especialistas em evacuações de emergência, com os apoios necessários para a sobrevivência do maior número possível de refugiados. Utilizavam um discurso um pouco hermético com siglas e termos técnicos à mistura e referências a casos anteriores. Conheciam os meandros mais ocultos e sinuosos da política externa e identificavam os motivos desta ou daquela medida. Previam com bastante precisão os movimentos seguintes e planeavam as medidas estratégicas de prevenção. Seriam completamente ultrapassados pelos acontecimentos, como mais uma vez se iria verificar. Por falta de meios e de apoio no terreno. E pela própria dimensão das situações de crise. Havia os especialistas de saúde, seleccionados pela capacidade de intervenção rápida quando expostos a níveis de stress elevados e prolongados. E militares treinados para lidar com multidões em fuga nas situações mais precárias, com o objectivo essencial de protecção, escolha dos trajectos mais seguros e detecção de explosivos nas vias a ser utilizadas. Finalmente alguns especialistas de informação, com o seu linguajar irritante, de quem se exprime para um público, de quem se preocupa com o lado espectacular dos acontecimentos. Verificou que era o único especialista teórico, por assim dizer. Isso começava a preocupá-lo. Como se iria adaptar à situação, à aproximação da realidade, do facto ao vivo e no local.

A cidade evidenciava todos os sinais possíveis da decadência e da destruição sistemática provocada por uma guerra civil. Tudo a saque. As casas desertas, algumas quase totalmente destruídas. O silêncio. A poeira amarela. 
Vagueou pelas ruas que lhe lembraram cenários abandonados de filmes antigos. Num momento a cidade era uma coisa viva, no momento seguinte uma coisa morta. E o pior era o esquecimento. Conhecera culturas que alimentavam as memórias da destruição e do sofrimento a que tinham sido submetidas. É certo, pensou, que mesmo essas culturas, que alimentavam as memórias do seu papel de vítimas de destruição, eram as mesmas que destruíam outras culturas. Vítimas históricas e agressoras históricas. De onde se podia depreender que é tudo uma hipocrisia pegada. Qualquer cultura promove o seu papel de vítima e não o faz inocentemente. Porque também tem vocação de agressor. Mas a memória era fundamental, não para promover a supremacia de uma cultura sobre outra, legitimar essa supremacia, mas para mostrar às pessoas essa realidade de agressores e vítimas, essa lógica humana.
 O homem evolui no sentido da sua própria protecção e sobrevivência num mundo hostil. Agora tudo o ameaça. Processos de destruição sistemática. E tudo à escala mundial.
 Percorreu a distância que o separava do grupo. A mochila pesava-lhe nas costas. Aliás tudo lhe pesava nesse dia. As imagens, sobretudo as imagens que registara. Pessoas aglomeradas em espaços sem quaisquer condições. A subnutrição. As doenças. Pessoas encurraladas, sem saída, sem hipótese de sobrevivência. As imagens registadas são muito diferentes da realidade ao vivo. Vive-se numa época em que se viram todas as imagens possíveis desse horror na televisão ou em vídeo, mas nada se compara à realidade. Vive-se numa época de habituação-banalização-acomodação. A violência e o sofrimento que não se vê não existe. Para se ver a violência e o sofrimento tem de existir o espectáculo. A informação e o seu espectáculo. Montar o espectáculo. Desmontar o espectáculo.

A Associação de Apoio à Vítima de Desmemoriação. Esta insistência na designação de vítima causava-lhe calafrios. Era a institucionalização de uma atitude. Só podia tornar-se a manutenção de um cenário e, nesse cenário, de uma peça repetitiva. A representação de um papel que se aprendeu e que se repete até à exaustão. Metemo-nos num papel, quase sempre desconfortável, e quase obrigamos os outros a representar também o seu papel, continuadamente. Não lhes damos grandes alternativas, esperamos que eles representem o papel que lhes atribuímos. O jogo dos papéis. A vítima precisa de um agressor, o agressor de uma vítima. O pior era quando uma vítima não pedia para ser vítima porque nunca o fora, não era a sua natureza, e de repente via a sua existência completamente destruída por um agressor que sempre o fora, era a sua própria natureza. Não havia vítimas suficientes para tantos agressores, concluiu. A história é feita destes desequilíbrios doentios.


CENTRO DE ESTUDOS DE RECUPERAÇÃO DE MEMÓRIA, 2011, OUTUBRO

Tinham-no sentado numa cadeira especial, pelo menos era o que lhe parecia. Distinguiu algumas luzes em volta, depois imagens mais nítidas. Um gabinete de portas envidraçadas. Nas paredes, painéis com luzes coloridas a piscar. Estes painéis eram-lhe vagamente familiares. Reparou tratar-se de uma espécie de mapas de cérebros humanos observados de perfil, alguns a rodar sobre si próprios.
 Um homem entrou no gabinete. Comentou qualquer coisa que lhe pareceu ser uma pergunta. Não teve tempo de responder. O homem inclinou-se sobre uma espécie de monitor colocado numa mesa oval e saiu. No corredor, por detrás da porta envidraçada do gabinete, que deixara entreaberta, viu-o falar apressadamente com outro homem. Deslocou a cadeira e inclinou-se para a frente. 
– Temos mais um caso. Com este são já vinte esta semana. 
– É uma autêntica epidemia. Refugiados por todos os lados. 
– E desta vez não temos quaisquer dados de identificação, nada. Nem um único cartão electrónico ou mesmo o processo clínico. 
– Nesse caso devemos contactar a Associação de Apoio à Vítima de Desmemoriação, o que é que achas? 
– O caso foi-nos precisamente encaminhado pela Associação. Parece que já não têm capacidade de resposta. Gostava que o visses. Nunca nos passou nada assim pelas mãos. 
– Estas pessoas apresentam todos os sinais de ter sido expostas a um processo de violência mental, a alterações radicais e definitivas, e aparecem-nos nas condições mais precárias. Quando é que isto vai parar? 

 




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